Post 003: Desabafo de um professor público

O homem não é nada além daquilo que a educação faz dele” (Immanuel Kant)

Não, este não é um texto de viés esquerdista sindicalista ou corporativista, não falarei de remunerações, condições de trabalho, nada disso, quero apenas falar daquilo que faz parte do meu cotidiano, que faz eu amar o que faço, que me mostra que ainda tenho muito a acrescentar na sociedade. Tais situações eu prefiro guardar, pois, se eu expor, as outras pessoas, inclusive meus colegas de profissão, vão dizer que é vitimismo, ou que não tenho postura ou, ainda, que não deveria interiorizar tais acontecimentos, pois bem, sente aí que lá vêm histórias de sala de aula que boa parte das pessoas fingem conhecer.

Confesso (se for um erro ou um pecado), não sou um professor “tradicional”, estou longe disso, não só pela minha forma de falar, tenho um diferencial a mais, trato meus alunos como “gente”, e não como um registro num diário, gosto de tê-los ao meu redor, conversar com eles, deixar que eles sejam livres para me perguntar sobre qualquer coisa, gerar uma espécie de amizade e cumplicidade e, ao contrário do que pensam, isso não quebra a nossa respeitabilidade, pelo contrário, gera um vínculo extremamente saudável. Pois bem, em uma dessas conversas, uma criaturinha, do 7º ano do fundamental, me perguntou a diferença entre o meu tempo de escola e o tempo atual, de pronto, expliquei que as principais mudanças eram o vínculo Família X Escola e a relação Aluno X Professor, sobre esses dois pontos que falarei nas próximas linhas.

Eu sou filho da escola pública, desde a minha formação inicial, e me lembro bem de quão cheias eram as reuniões de pais que minha mãe participava, a frequencia com a qual os responsáveis iam à escola questionar o rendimento de seus filhos. Como me lembro disso?! Era aluno! Zuava quando a mãe de algum colega aparecia e era zuado quando a minha ia. Em resumo, os pais sempre davam um jeito de ver como seus filhos estavam na escola antes de ir ou no retorno do trabalho, nos dias de folga, mandavam a avó, enfim… Porém, com o avançar do tempo, parece que essa preocupação foi se esvaindo e, atualmente, se você quiser conversar com algum pai, tem que “convocar” ele, sim, convocar! Mesmo assim, alguns ignoram as convocações, porque tem que trabalhar, tem que limpar a casa, fazer a comida, sentar na calçada de casa para falar do vizinho… Sempre inventam uma desculpa para não honrar com suas responsabilidades de pais, suas agendas extremamente corridas, sempre “cheios” de compromissos e nunca podem aparecer para tratar da vida estudantil de seus filhos, os levam até a porta da escola (quando levam), os entregam e só falta dizer: “Agora é com a escola, vou ficar livre por um tempo”. Esses mesmos pais são aqueles que culpam a escola, diretores e professores quando seus filhos se envolvem com o crime, contraem doenças, se evadem ou se envolvem em uma gravidez precoce. Em resumo, a cada dia que passa, as famílias “terceirizam” suas responsabilidades, delegando ao Estado a formação do caráter de seus filhos, atribuição esta que nunca foi nossa.

Bom, se as relações familiares na escola mudaram, as relações entre alunos e professores acompanharam as mudanças, porém, a meu ver, de forma mais positiva… Os alunos, hoje, são mais próximos de seus professores, sempre tem alguma coisa para falar, para perguntar (mesmo fora da matéria), coisa que era bem diferente na minha formação, quando corríamos dos professores nos corredores e, dar um recado na sala dos professores, era como uma caminhada pelo corredor da morte, kkkkkk…

Um fato é certo, a desestruturação familiar afeta direta e indiretamente o rendimento do alunado em geral, os pais não “pegam no pé” para estudarem em casa, resumindo, as dificuldades de aprendizagem aparecem, além disso, essas crianças, hoje, passam por dramas e problemas que muitos adultos nunca passaram ou passarão, citarei, por cima, alguns exemplos que eu presenciei na minha curta carreira de professor:

Tinha uma aluna brilhante e promissora, uma das melhores da sala, pois bem, a partir da metade do ano letivo o rendimento dela começou a cair, no comportamento, ela começou a ter aversão por presenças masculinas, poucos eram aqueles que conseguiam contato com ela… tudo isso porque, essa menina de 15 anos viu o pai bater e esfaquear a mãe até ela entrar em coma e ficar entre a vida e a morte, começou a estudar pela manhã e trabalhar à noite para sustentar a casa enquanto a mãe estava “impossibilitada”… Bom, mas, de repente, com o andar do relativismo social isso não choca mais, passemos…

Na mesma escola, porém, em turmas diferentes, uma colega professora e eu, tivemos que segurar um aluno que, em um surto depressivo, tentou se jogar, literalmente, de cabeça, do segundo andar da escola, pois, não aguentava mais a indiferença com a qual seus pais o tratavam, os pais diziam que a depressão dele era “frescura”, suspenderam sua medicação, afinal, “Deus” ia libertar ele dessa “opressão diabólica”. Como se isso não bastasse, eles o forçavam a bloquear contatos e não retornar as ligações daqueles que queriam o fazer se sentir aceito, acolhido e queriam ajudar, inclusive nós professores…

Ainda tá achando que isso é de boa? Vamos lá, quando foi a última vez que você viu uma pessoa desmaiar de fome? Eu presenciei um fato assim: o aluno DESMAIOU durante a aplicação de uma prova, depois de muita insistência ele abriu o jogo e disse que não tinha uma refeição decente a 5 dias, ele preferia dar a comida dele para os irmãos menores e ficar a base de água. “Ah, mas a escola tem merenda?”, de repente esse é seu argumento para contestar o episódio apresentado, você até poderia estar com razão, exceto por um detalhe: era uma sexta-feira de semana de prova, horário e expediente reduzido, a merenda era um “lanche leve”… Você conseguiria ficar “de boa”, saciaria sua fome de 5 dias comer biscoitos e um copo de suco ou achocolatado?

Chocado?!

Isso porque eu não relatei os inúmeros casos de abuso sexual que minhas alunas me confidenciaram, envolvendo, inclusive, seus pai, tios, primos, irmãos… Traumas que elas guardaram por anos sem ter alguém “de confiança” para desabafar; as “coroas” do EJA Noturno que trabalham o dia inteiro e estudam à noite, mas entre o trabalho e a escola, eram surradas pelos maridos, etc., etc., etc..

Para encerrar, esta semana, ao iniciar um dos meus expedientes, um dos meus filhos (porque meus alunos são como meus filhos), me para no corredor, me dá o abraço mais apertado que já recebi naquele ambiente… Eu perguntei o porquê daquilo, e a resposta foi “porque só vocês que me abraçam, lá em casa ninguém liga pra mim”.

Encerro esse texto, que já está grande demais, com uma provocação aos pais e responsáveis, até mesmo, aos meus alunos mais velhos que são pais: você já parou para pensar no tamanho do vazio que nossas crianças sentem? Já parou para pensar que a dedicação que eles têm às redes sociais, jogos, alcoolismo, pornografia, sexualidade precoce e outros vícios pode ser provocada pela ausência da ação familiar na vida deles? Em relação a esse vazio familiar, sinto lhes informar: escola nenhuma vai suprir a carência de um lar desestruturado!